Análise do capitulo O mundo em pedaços: cultura e política no fim do século, no livro Nova Luz sobre a antropologia (2001), de Clifford Geertz.
O que é a cultura senão um consenso?
O panorama mundial está ficando mais global. E mais dividido. Mais interligado e ao mesmo tempo compartimentalizado. O cosmopolita e o provinciano estão agora unidos. E o crescimento de um proporciona o crescimento do outro. E isto tudo tem grande relação com o crescimento da tecnologia.
Com o desenvolvimento da tecnologia a integração do mundo torna-se evidente. E pequenas alterações, choques, conflitos em lugares geograficamente distantes podem ser sentidas por todo o globo. O mercado financeiro é uma prova disso; mas, conflitos políticos e catástrofes naturais também alteram a realidade de forma local e, agora mais do que nunca, globalmente. A própria media tem seu papel aumentado. (Notamos como exemplo as rebeliões em Egito, Síria e o Oriente Médio por "democracia" ou uma nova forma de governo e as possibilidades de ajuda internacional no caso de desastres como o último grande terremoto no Japão). Notícias transpassam o planeta instantaneamente pela media altamente tecnológica.
Portanto, cada mudança local, que agora é sentida como global, diminui o mundo, o integra. Mas não apenas notícias são globais como empresas são globais, como o capital é global, porque móvel, e as próprias pessoas tornam-se globais, e daí advém o termo “capitalismo sem fronteiras”, ou “aldeia global”. E essa interconexão, esse limite de fronteiras sobreposto interconectando o mundo, cria interdependência. No entanto, não se pode dizer que não há fronteiras.
Não se pode dizer isto porque mesmo sem bordas aparentes, não há de forma idêntica identidade aparente. A aparente integração da “aldeia global” é fraca, porque continuam existindo grupos internos que se localizam, se identificam em uma cultura singular. Porém, demarcar estes territórios para estas culturas não é tarefa fácil, é antes algo arbitrário e impreciso. É, praticamente, uma tarefa impossível. Mas, teoricamente, há solução.
Mesmo a antropologia vem encontrando dificuldades para lidar com essa questão, segundo Geertz. Mesmo assim, sendo a tarefa difícil, não se deve fugir, pelo contrário: deve-se buscar compreender a realidade de um mundo intrincado e diverso em simultâneo. Mesmo com a globalização do mercado financeiro, industrial ou tecnológico, as culturas persistem, continuam diferentes, se diferenciam, são diversas. Porque “quanto mais as coisas se juntam, mas ficam separadas: o mundo uniforme não está muito mais próximo do que a sociedade sem classes.” (Geertz, 2001, pp217).
Segundo Geertz, a antropologia se vê atrapalhada para lidar com a organização da cultura no mundo moderno pois durante sua própria história não foi encontrada a melhor maneira de se pensar sobre a cultura. Geertz então apresenta como se pensava a cultura no século XIX e parte do XX, como oposição a natureza, e o seu distanciamento dela como sinônimo de progresso, e como após a I Guerra Mundial, com o crescimento do trabalho de campo, passou-se a utilizar o termo no plural. Como “organismos sociais, cristais semióticos, micromundos,” cultura como o que um povo tem e mantém em comum. A concepção genérica deu lugar a concepção confugurativista.
No entanto, após a II Guerra Mundial, a concepção configurativista esmaeceu porque novas configurações de Estado agora delimitavam culturas. Foi tentado explicar minorias dispersas como tendo caráter único, porém não houve sucesso. A totalidade da cultura não existe sem o Estado e sociedades nas quais aquela está inserida. Culturas não têm pontilhados as delimitando, nem mesmo os Estados verdadeiramente mais o têm. O que cria a identidade de uma cultura, de um povo, de um indivíduo é agora a própria visão como contrastantes ao outro.
O mundo contemporâneo é fragmento, e não há lugar para a visão configurativista do tipo dos “ Argonautas do Pacífico Ocidental”; o território compactado, o tradicionalismo situado não mais dizem respeito à fronteiras para culturas, não há sequer identidade cultural integral mais. O que parece identificar o coletivo é a fissura, justamente o oposto da integração. Quer-se manter a ordem da diferença no mundo capitalista sem fronteira.
Não se consegue compreender logicamente como opera o mundo moderno, com o amontoado de diferenças querendo prevalecer sobre outro amontoado. E sem o entendimento do mundo numa teoria política consistente o rumo do planeta torna-se totalmente desconhecido. A antropologia pode então contribuir com a sua visão que vai além do óbvio, do mais aceito ou querido. A história do Ocidente não é a história de todo o mundo. Há uma nova visão, uma revisão. A recomposição africana e asiática após as descolonizações talvez venham mudar esta visão do mundo ocidental dramaticamente.
Na África o demarcação territorial foi arbitrária e povos ficaram deslocados. Em Estados diferentes etnias antes unas, agora se separam ou se unem a outras antes distantes. Essa realocação de pessoas, e junto com elas de culturas, é uma marca homogênea criadora de heterogeneidade na história recente do continente africano. E ela é visível porque ainda está ocorrendo, e problemas surgindo, e não está acabada, como a união da Alemanha com Bismarck há quase dois séculos.
Ainda, há níveis e níveis de heterogeneidade, e é difícil saber arrumá-los. Caixas sobre caixas de detalhes separadores de visões de mundo se avolumam dentro de uma heterogeneidade avassaladora. O consenso é difícil de ser enxergado e apontado, para Geertz, na maioria das vezes. A variável dependente é o ponto de vista esmerilhado, o interesse sobrepujante para a definição de uma identidade num quadro.
Na emergência do texto, Geertz cita o exemplo da Indonésia, e a dificuldade que ele encontrou quando estudou tal país para preencher o quadro das identidades. Geertz cita o variegado contingente cultural e as inúmeras cosmovisões, modos de encarar a vida, ideias concebendo o mundo, distintas e inconsistentes também geograficamente por se tratar de um arquipélago, para afirmar que apesar de toda a dificuldade a tarefa dele é essa mesma: buscar compreender o que os mantém até hoje unidos satisfatoriamente em um mesmo Estado. E aplica um método para dar vida ao discurso dos “povos e culturas”.
Então, ao explicar a indexação, ou fichamento para dar lógica ao entendimento da organização, ou classificação feita pelo estudo antropológico, Geertz chega a uma definição de grupo consensual mínimo como sendo sinônimo do que se chama “cultura” e grupo consensual máximo, que é chamado de “Nação” ou “Estado” (Geertz, 2001, pp221). Os detalhes embutidos nos arquivos dessas fichas de arranjo, no entanto, ficam de fora.
E justamente aí, nos povos imiscuídos, se encontram o todo irregular, indefinido que tendo regras e interpretações de funcionamento do Estado e da ordem absorvido subjetivamente, constroem uma identidade da dessemelhança. Portanto, vários grupos diferentes interpretam objetiva e subjetivamente regras de convívio, e criam laços fragilmente dados pelos desníveis destas interpretações. O consenso é justamente a variedade interpretando a realidade e amenizando subjetividades.
E para Geertz, a imagem de conflitos, de microrrealidades lado a lado, da Indonésia, é uma imagem do mundo moderno. Bem como naquele país, em França, na Itália, nos Estados Unidos, os provincianismos, a mistura étnica, religiosas, culturais tentam conviver pacificamente. Geertz vê que a política precisa sair do mundo do pensamento exato e cair na realidade inexata, e tentar pensar ela, de fato. E para tanto a antropologia contribui implicando a “política prática de conciliação cultural” (Geertz, 2001, pp 224). E esta política terá que agir de acordo com a época na qual está situada. E também deve ter metas e diagnósticos precisos.
Na sequência da análise, são apontadas algumas formas de ordem lógica que esta política prática deveria conduzir, antes deduzindo o objeto do estudo. E então, esta política deve ser capaz de açambarcar o mundo estilhaçado, mostrando-o um caminho seguro a seguir, onde há duas tendências, a saber, a primeira onde as diferenças possam conviver, ou, na outra tendência, os pontilhismos da cultura puro sangue se recomponham.
Por fim, Geertz esboça como um liberalismo social-democrata, no seu caráter equalizador de oportunidades, neutro como Estado no que diz respeito às crenças, com seu apelo à liberdade, favorável à lei e à universalidade dos direitos humanos, falando ao menos em teoria, poderia sobreviver em tal política supracitada. E Geertz acha que este liberalismo é necessário, e não apenas possível.
Por fim, a questão da sobrevivênca deste liberalismo como posto acima, recai no modo singular de cada local, cada autor, cada intérprete, sem deixar cair por terra o significado da palavra, sem desvirtuá-lo e sem significar relativismo. E, também, não se pode confundir o alvo com a pontaria, o desejo com a realização: a discussão política deve ser séria, estar no plano do real, atual e local.
Portanto, parece-nos que para Geertz, a compreensão perfeita do liberalismo indica aceitar um modo de se pensar estabelecido longa, razoável, e coerentemente como algo que o próprio ser humano vivendo no mundo ocidental, e confrontando suas experiências, identificou como sendo sinônimo de melhor para convivência em sociedade, que significa em outras palavras “a obrigação moral de ter esperança” (Geertz, 2001, pp227).
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